Por ocasião do lançamento da primeira edição do livro Fraternidade ‒ Missões Humanitárias Internacionais em inglês e espanhol e da segunda edição em português, publicado pela Irdin Editora em parceria com a Fraternidade – Federação Humanitária Internacional (FFHI), a autora Ana Regina Nogueira falou à equipe de comunicação da Fraternidade – Humanitária (FFHI) sobre o seu processo de pesquisa, as profundas mudanças que vivenciou enquanto, como escritora e pessoa, tecia as histórias narradas pelos missionários voluntários, que doaram seus serviços, amor e cuidados a causas humanitárias contundentes entre 2011 e 2018 no Brasil e em mais 16 países da África, América Latina, Ásia, Europa e Oriente Médio, somando 23 missões.

Livro: Fraternidade – Missões Humanitárias Internacionais

Baixe o livro em pdf Adquira o livro

Ana Regina escreve “…com os olhos fixos neles, segui-os por areias do deserto humano. Peregrinei por paisagens do mundo, vi a dor se transformar em alívio, a fome em banquete. Tomei café muçulmano, ouvi chamados de mesquitas. Estive em caminhos agrestes do pranto, senti o significado da misericórdia, entrei em casas e templos, no visível e no invisível.”

Convidamos você, caro leitor, a acompanhar as histórias por trás das histórias, os processos criativos, por vezes sutis, vivenciados pela escritora enquanto compunha as 484 páginas deste livro que nos faz rir e chorar, que é um convite, nas palavras da escritora, à transformação e um sonho de alcançar corações que estejam sedentos por mudanças e por viver o amor em seu estado pleno. Passamos a palavra à autora. Seja bem-vindo!

Sobre a dúvida

Não sinto dúvida alguma, nenhum tipo de insegurança quando me é pedido para escrever um livro. Se me é pedida uma tarefa é porque, com certeza, vou conseguir fazê-la. Estou nesta Obra nascida da Comunidade-Luz Figueira há mais de 30 anos. Já disse sim para as mais diversas tarefas: fotografar, diagramar, criar sites e, desde 2013, escrever livros indicados por Trigueirinho. Simplesmente arregaço as mangas e começo a trabalhar. Meu compromisso é com a verdade e com escrever sobre os fatos reais de voluntários. Eu mesma sou uma voluntária. Fui duas vezes a Roraima para sentir, viver o cotidiano dos missionários dentro dos abrigos e para descrever com vida aquilo que vi e senti.

O processo de pesquisa e redação do texto é uma grande aprendizagem

Este livro é a voz de voluntários e voluntárias que estiveram em missões. Nasceu a partir de entrevistas e de outro processo: o estudo. Pesquisei nos melhores livros que pude encontrar, por exemplo, sobre a África, sobre as guerras, como a da Síria. Precisei compreender o Oriente Médio. Antes de contar a história, precisei mergulhar nos ambientes dos países onde aconteceram as missões. A parte mais dura do trabalho, mais cruel, é a de pesquisa. Tive de tomar contato com o horror, a maldade sem limites e a injustiça que faz parte da história de nosso planeta. Por exemplo, a do Congo ou a de Ruanda, que, com a briga étnica dos grupos Tutsis e Hutus, dizimou quase 1 milhão de ruandenses. A história dos indígenas das Américas, de abuso do poder, de ignorância e de preconceito. São considerados seres inferiores pelos dominadores. O coração às vezes doía, ardia com histórias como a de uma indiazinha do Chaco que, a cada vez que falava o próprio idioma em sala de aula, tinha de lavar a boca. Todo o processo de escrita é uma grande aprendizagem.

 

Hora de redigir, tecer histórias

Depois das entrevistas transcritas e as pesquisas feitas, o redigir é uma parte deliciosa e exige extrema sutileza. Vou sabendo o que escrever enquanto escrevo. Preciso me observar o tempo inteiro, estar atenta àquilo que vai me sendo indicado pelo mundo interno, pelo que vem de dentro. Sentada diante da tela em branco do computador, é um momento de auto-observação a cada segundo. E tudo vai fluindo. Há situações curiosas em que, sem quê e nem porquê, o meu rosto se vira, bato os olhos em um livro e sei que nele será mostrado um caminho. Eu o pego e me conecto com ele, abro-o de forma aleatória e ali está a chave, a resposta para alguma pergunta: a indicação do que escrever naquele capítulo ou naquele parágrafo. Isso é impressionantemente real a cada passo. Vou dar outro exemplo de como as respostas chegam: no livro existem quase 60 citações, as mais variadas, desde as de poetas como Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles até as de mestres espirituais, Buda, Alice Bailey, as de grandes livros como Agni Yoga, as de instrutores, como o próprio Trigueirinho. Essas citações simplesmente chegaram. Mas, para o capítulo Turquia, não me era apresentada nenhuma, nenhuma refletia, espelhava a energia desse capítulo. Conversando com alguém, ele me indicou o filme turco Mucize. Eu o assisti, lindo, e a citação estava ali, na fala de um camponês. Acontece assim, das formas mais variadas, e também durante o processo de redação: escreva isso, não é para escrever aquilo. Eventualmente troco um capítulo ou um parágrafo de posição. E o livro vai sendo esculpido, vai sendo formado. É uma criação a partir da clareza, de indicações internas e externas precisas. A revisora de português Teresinha Pires acompanha cada capítulo e me dá um apoio valioso.

A contribuição da fotografia na construção do olhar

Eu sinto, eu sei, o que é a fotografia. Fui fotógrafa profissional durante 50 anos. E, nesse período, treinei o olhar. Aprendi a enxergar a luz, a observar os planos, o mundo. Quando faço uma entrevista ou leio a sua transcrição ou quando leio certo texto, as imagens apresentadas ficam gravadas em minha memória. Depois, na hora de redigir, eu só vou descrevendo o que enxergo na memória, o que vejo dentro. Escrevo textos de não ficção, nunca baseada em conceitos. Descrevo o que o olhar interno me mostra e o que sinto sobre o que me é apresentado. Eu recebo uma imensa ajuda silenciosa, basta ficar disponível, atenta aos sinais sutis, àquilo que silenciosamente chega. Sempre tento fazer o melhor que posso. Apesar de ser tão limitada, e sou extremamente limitada, tenho plena consciência disso, fico ali, disponível e absolutamente certa de que a ajuda da qual necessito vai chegar das formas mais incríveis.

Amadurecimento e transformação

Fui profundamente transformada durante a escrita deste livro. Passei por um processo forte de amadurecimento ao estudar a história de cada país e a de missionários que só buscam o bem, que saem de si para ir cuidar de um semelhante na África, na Ásia. Conforme escrevo, preciso me identificar profundamente com a alma daquele sobre o qual estou escrevendo. Crio uma segunda pele em mim mesma enquanto falo de um determinado missionário. Estou nele e ele em mim, presente, como se me cobrindo com um manto sutil para que eu descubra o olhar dele diante de situações vividas ao brincar com crianças que tiveram pais decapitados, como na Turquia, ou ao se encontrar com um músico que teve os dedos quebrados apenas por ser músico ou com médicos que perderam tudo fugindo de seus países na neve… Essas e outras dezenas de histórias que eles me contaram e vou relatando no livro, essas histórias altruístas me fizeram mergulhar em tantos universos e me transformaram.

Missão Turquia

Ancara, Turquia, 2016. Pág. 111

Sentir uma profunda dor pela dor do mundo

Algumas vezes entrei em crise, passei por mudanças de ânimo. Em determinados momentos passei por angústia mesmo, dor pela dor do mundo. Precisamos vivenciar aquilo que a gente escreve, precisamos nos esquecer de nós mesmos para ser o outro. Mas, para não cair, tenho aprendido a ficar acima da dor. Estou aprendendo a estar acima do caos, da maldade. A estar em paz dentro, acima e fora de tudo. Em paz. Isso me ajuda imensamente, esse treinamento que passei prossegue a cada dia. Escrever é um processo profundo de identificação com os personagens do livro, em que os próprios personagens me ensinam a crescer, a me tornar um ser humano melhor.

Lições aprendidas que podem ser aplicadas aos dias de pandemia

Agora, nessa pandemia, vivi uma situação pessoal de angústia, parecida com a que vivi durante momentos da escrita, e tive de me superar, de me restaurar. Saí daquilo em horas através da oração, da lucidez, da fé, da respiração e por dividir o que sentia com uma amiga que estava bem. Fiz um trabalho para trazer a paz de volta ao coração. Aprendo a me manter ali naquele estado mais alto de paz, acima de toda ignorância, de toda cegueira, acima de toda ilusão.

Histórias de alegria, esperança e possibilidade de transformação humana

Quando estive por 10 dias em Roraima, nas cidades de Pacaraima e Boa Vista, pesquisando para o livro, assisti ao vídeo de uma dança realizada por mulheres indígenas warao para convidados e os próprios residentes do Abrigo Pintolândia. Queriam agradecer e homenagear o Brasil. Costuraram à mão, pontinho por pontinho, umas batas longas verdes e amarelas. Como haviam esquecido as danças étnicas originais, porque viviam nas ruas da Venezuela, um cacique as ensinou a dançar novamente. Dançam unidas, com movimentos para frente e para trás, como um único corpo. Essa coisa de união me enternece. Dançaram cantando para o rio Orinoco, junto ao qual os warao moraram milhares de anos. Quando Colombo chegou à Venezuela já os encontrou ali. E, de repente, esse povo perde tudo. As warao cantavam para o rio e, conforme fui escrevendo, enxergava o rio escoando pelo chão do abrigo sob os pés delas, e o suor pingando de seus rostos. A Fraternidade – Humanitária (FFHI) as encontrou no mercado, cheias de piolhos, cheias de feridas. Agora, os cabelos longos dançavam soltos, limpos, brilhantes e elas retomavam um pouco de sua cultura. Essa história foi a primeira que escrevi. Histórias de transformação nos comovem. Outra vez, no Abrigo Nova Canaã, eu estava observando o rosto dos refugiados, quando foi anunciado pelo microfone que iriam abrir uma escola para crianças. Meus olhos tocavam a face tristíssima de uma mulher com cerca de 30 anos, quando a missionária chamou para uma reunião quem quisesse ser professor. Naquele momento, o rosto da mulher se iluminou, um quê de esperança começou a nascer. Durante a reunião, escorreram lágrimas de seus olhos. Meses depois, eu estava em F2 [na Comunidade-Luz Figueira], e a vi dando aula num filme [produzido pela Fraternidade – Humanitária (FFHI)]. Ela voltou a ter alegria. No livro, conto também a história de uma jovem missionária que participa de um parto warao. Nascida na cidade de São Paulo, ela jamais havia nem visto um parto, mas dava o melhor de seu ser, com toda a doação, lutando por alguém que nem conhecia. Atos de amor são tocantes. O livro mostra atos de dor, mas sua nota é a alegria, a esperança e a possibilidade de transformação do ser humano!

“Palavras amáveis abrem portas de ferro”. A verdade para enfrentar as nocivas fake news

As pessoas hoje estão se deixando envolver e se desequilibrando por mensagens mentirosas sendo espalhadas por aí. A mentira passou a fazer parte de nossa vida de uma forma nunca antes vivida. Estamos aprendendo a lidar com essa situação. Eu me lembro ter recebido, no início, uma avalanche de fake news. Minha tendência era acreditar, porque eu jamais enviaria uma mentira. Achei que posts falsos eram verdadeiros. Desde então, estou aprendendo a discernir os conteúdos de mensagens. Algumas, descarto na hora. As que me deixam em dúvida, procuro especialistas sérios, cientistas, médicos, que me dão explicações sensatas. Hoje existem fake news verdadeiramente assassinas, por exemplo, as que pregam o não uso de máscaras, o não distanciamento social. Isso é uma maldade fora do limite de nossa compreensão. O livro, na abertura da missão Turquia, diz: “palavras amáveis abrem portas de ferro”. Com certeza este livro pode contribuir para o momento atual, pois mostra verdades, não apenas na vida missionária, mas verdades acontecendo pelo planeta.

Missão Turquia

Ancara, Turquia, 2016. Pág. 111

Um sonho para o livro

Que ele seja levado às mãos dos leitores corretos, abertos para o impulso que o livro oferece. Que semeie o bem e seus valores positivos nas consciências dos leitores. Que seja levado pelo mundo, de forma misteriosa, até as mãos certas. O livro agora está em inglês e espanhol, portanto, mais pessoas podem ser impulsionadas por ele. O que eu gostaria de desejar, neste lançamento, é que os leitores tenham a coragem de se transformar. Se o conhecimento, o saber deste livro, chega a eles, é porque seus corações precisam desta instrução – talvez até tenham corações missionários. Espero que os leitores deixem brotar o lado amoroso, altruísta, que os servidores retratados no livro demonstram e tanto ensinam. Deixo aqui minha alegria por saber que alguém lerá esta mensagem de esperança, e envio, para os leitores, a minha bênção