O sentimento humano pode peregrinar por toda a parte.
Mesmo buscando o amor, só o encontrará em si mesmo.
Para todo o ser humano, o seu eu é o mais amado.
Assim, quem se conhece como ser amado não deve ferir os outros.
(Verso Budista)
Nas duas primeiras reportagens da série sobre o Manual Esfera abordamos as bases em que se assentam as boas práticas das respostas humanitárias e o arcabouço ético e jurídico que protegem e amparam as organizações envolvidas na ajuda às populações em risco. A terceira reportagem dá início aos Capítulos Técnicos, nos quais os atores humanitários se apoiam para prestar ajuda eficiente às pessoas em risco, com o suporte de especialistas, além da experiência acumulada pelas organizações humanitárias.
Não é por acaso que o direito à água e ao saneamento são garantias básicas nas doutrinas e diplomas legais internacionais. Mas a imagem que chega para a maioria das pessoas a respeito de situações de crise humanitária – quer em decorrência de um conflito armado ou de uma catástrofe natural – é a de um amontoado de barracas, em abrigos e assentamentos com muito lixo, água empoçada ou esgoto escorrendo a céu aberto. É a imagem do caos e da precariedade.
Na maioria das vezes, o cenário é mesmo real. Por isso, os capítulos técnicos do Manual Esfera abordam com profundidade a questão da água e do saneamento. Esses temas estão incluídos no princípio WASH, abreviatura em inglês para “Abastecimento de Água, Saneamento e Promoção da Higiene”. Numa situação de crise, as pessoas afetadas estão mais vulneráveis a enfermidades, podendo até mesmo morrer em decorrência de doenças infecciosas, em especial as diarreias.
O principal objetivo WASH é reduzir os riscos de saúde pública, criando barreiras para evitar as principais vias de contato: mãos, fluidos, água contaminada, fezes, alimentos e vetores como insetos e roedores. As barreiras que podem parar a transmissão de doenças são as primárias, quando se impede o contato inicial com as fezes; e as secundárias, quando se previne a ingestão. Nos dois casos, o acompanhamento é feito através de intervenção no controle da água, do saneamento e da higiene.
Diante desse cenário, cada vez mais presente em várias partes do mundo, especialmente no Brasil, Esfera elencou uma série de normas, baseadas nos princípios, direitos e obrigações declaradas na Carta Humanitária. As principais atividades WASH são:
- Promover boas práticas de higiene;
- Fornecer água potável em quantidade adequada;
- Oferecer instalações sanitárias apropriadas;
- Reduzir riscos ambientais à saúde;
- Garantir às pessoas condições para viver com boa saúde, dignidade, conforto e segurança.
O Desafio na Prática
Um exemplo de aplicação de ações WASH no âmbito das missões humanitárias da Fraternidade – Federação Humanitária Internacional (FFHI) foi descrito pelo missionário matriz Rafael Gama, que atua na Missão Roraima. Neste estado, a instituição faz a gestão, em parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), de quatro abrigos para refugiados venezuelanos – dois para indígenas, um para famílias e outro para homens solteiros, casais sem filhos e pessoas LGBT –, nos quais desenvolve também, em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), projeto específico de WASH – além da Casa de Acolhimento, onde estão mulheres e crianças vítimas de violência. No estado do Amazonas, o mesmo trabalho é desenvolvido no Alojamento de Trânsito de Manaus (ATM).
A Fraternidade – Humanitária (FFHI) mantém os abrigos tendo como referência e norte o Manual Esfera. A busca por melhorias é feita, em consonância com as normas mais importantes dos programas WASH, no gerenciamento de toda a cadeia da água: fornecimento, tratamento, distribuição, coleta, armazenamento doméstico e consumo; além disso, também empreende esforços em gerenciar o saneamento de forma integrada, promover comportamentos saudáveis e garantir acesso a produtos de higiene.
Os missionários da Fraternidade – Humanitária (FFHI) já realizaram melhorias nos abrigos, dotando-os de áreas com lavanderias, lavatórios, entre outros benefícios. O esforço é no sentido de atender o manual. “Dentro de um contexto de emergência, nem sempre é possível atingir o padrão do Manual Esfera. Mas nós estamos fazendo uma parceria com o UNICEF para um projeto de emergência e em menos de quatro meses devemos atingir as normas mínimas do Esfera”, diz Rafael Gama.
O alto grau de dificuldade em atingir os padrões se deve à complexidade das ações. O manual prevê seis categorias de normas WASH: promoção da higiene, abastecimento de água, gestão de excrementos, controle de vetores, gestão de resíduos e WASH em surtos ou epidemias de doenças.
Os especialistas estabelecem que o consumo mínimo diário de água por pessoa, para beber e para higiene, é de 15 litros. Esse volume varia de acordo com a fase da resposta humanitária ou ao contexto da crise, como, por exemplo, em casos de seca. É muito pouco se levarmos em consideração que o consumo mínimo aceitável de um morador de área urbana é de 50 litros de água por dia. Além disso, a fonte de água não pode estar a mais de 500 metros de distância, o tempo de espera na fila não pode ser maior do que 15 minutos, e uma bica (ou torneira) deve atender a 250 pessoas.
As dificuldades se multiplicam em relação aos cuidados de higiene. Cada pessoa deve ter acesso, no mínimo, a 250 gramas de sabão para banho e 200 gramas de sabão para lavar roupas ao mês. As organizações humanitárias também têm de atender questões como a atenção à higiene menstrual e à incontinência, principalmente entre os idosos, enfermos e pessoas com deficiências.
Outro ponto que merece atenção nas respostas humanitárias é a gestão dos excrementos, fonte importante de contaminações que pode acarretar doenças sérias. Os abrigos e assentamentos devem ter pelo menos um vaso sanitário para cada grupo de 20 pessoas e os banheiros não podem estar a mais de 50 metros de distância. Uma preocupação relacionada às dificuldades de deficientes, pessoas com incontinências e doenças crônicas. Além disso, a norma padrão prevê banheiros com chave, iluminação e que sejam seguros para mulheres e meninas.
Situações de surtos ou epidemias de doenças ganham uma importância adicional. A prevenção e controle de infecções é uma atividade fundamental em qualquer situação, mas devem ser reforçadas nas respostas a surtos. Por isso, práticas de WASH apropriadas e sistematicamente aplicadas, tanto na comunidade como nos serviços de saúde, reduzirão a transmissão de doenças infecciosas e ajudarão a controlar surtos.
É o que vem acontecendo na Missão Roraima em tempos de pandemia, onde os atores humanitários precisaram adaptar instalações dos abrigos para impedir a transmissão do novo coronavírus. Num dos abrigos indígenas, a notificação de um caso positivo de Covid-19 obrigou a transferência de cerca de 200 pessoas – integrantes do grupo de risco e seus familiares – para evitar o contágio. Além disso, houve uma série de melhorias básicas. Foram incluídos lavatórios nas entradas dos refeitórios e estações de lavagem de mãos para os que entram e saem dos abrigos. É uma atitude obrigatória. Além disso, os missionários ajudam a comunidade a produzir as próprias máscaras de pano para proteção, exatamente como destacam as ações WASH: estimular a participação da comunidade para o sucesso da resposta humanitária.
Quem percorre os abrigos dos refugiados venezuelanos em Roraima se surpreende com a estrutura e a organização. Ainda há muito a fazer, mas é um exemplo de que a resposta humanitária dada com responsabilidade e conhecimento técnico – como propõe o Manual Esfera – devolve dignidade e segurança a quem deixou tudo para trás.