No dia 30 de abril deste ano, o Núcleo-Luz Sagrados Reinos de Figueira em Brasília (NLSR), filiado à Fraternidade – Federação Humanitária Internacional (FFHI), recebeu a visita da Dra. Clara Takaki Brandão, respeitada nutricionista, nutróloga e médica pediatra, que ministrou aos presentes uma agradável oficina de alimentação viva e natural.
Dra. Clara revolucionou a nutrição infantil brasileira com a criação da farinha Multimistura, um complemento alimentar que enriquece a alimentação do dia a dia com a maior variedade possível de alimentos disponíveis na própria região.
O encontro no NLSR
Durante o evento realizado no NLSR, Dra. Clara não poderia deixar de abordar a importância da Multimistura e o valor nutricional de seus componentes. Mas as orientações da pesquisadora ao longo do evento não se restringiram à elaboração e uso da Multimistura; ela tratou também de temas como “soberania alimentar” – direito das comunidades a uma dieta composta por alimentos acessíveis, isto é, obtidos na própria região – e “produção sustentável”– segundo a qual as populações devem ser responsáveis por seus próprios sistemas produtivos. Dra. Clara Brandão discorreu ainda sobre cada uma das premissas da alimentação alternativa, a saber: alto valor nutritivo, baixo custo, paladar regionalizado, preparo rápido e facilidade de implementação.
Também enfatizou a importância da utilização de produtos orgânicos na alimentação, mostrando que o atual crescimento do número de crianças autistas na população estaria associado ao uso indiscriminado de agrotóxicos, especialmente o glifosato, um elemento altamente tóxico. Além disso, recomendou a eliminação, da dieta alimentar, de produtos como o açúcar, a farinha de trigo refinada e todos os derivados do leite.
Um destaque do encontro foram as curiosidades trazidas sobre alguns produtos. Por exemplo: em situações de carência de água potável, algumas sementes de moringa oleífera colocadas em infusão são suficientes para purificar um litro de água e torná-la adequada ao consumo humano. Já sobre a abóbora, aprendemos que tudo pode ser aproveitado: casca, polpa, sementes, raiz e folhas. E que, por terem características nutricionais complementares, todas as partes do fruto devem ser consumidas, garantindo o máximo aproveitamento de seus nutrientes e evitando o desperdício. Nesse contexto, constatamos que a popular abóbora cabotiá – também conhecida por abóbora japonesa – revela-se menos nutritiva que as demais espécies, pois, por ser um produto híbrido, ou as sementes estão ausentes, ou são estéreis.
Outros exemplos de alimentos complementares: polpa e casca de mamão verde orgânico; folhas verde-claras (p.ex., alface) e verde-escuras (p.ex., espinafre e folha de mandioca) etc. Esses alimentos, quando consumidos em forma “casada”, conferem às refeições uma melhor qualidade nutricional, permitindo o atendimento das necessidades diárias de nutrientes com uma menor quantidade de alimentos: ponto positivo no combate à obesidade.
Na segunda parte do encontro, realizou-se a oficina propriamente dita, com o preparo e a degustação de receitas criadas pela palestrante com base nos princípios da “alimentação alternativa”: brigadeiro de abacate, torresmo de soja, farofa crocante, saladas diversas, vinagrete e deliciosos molhos. Todos admiraram a criatividade das receitas, a rapidez no preparo, a forma inusitada de utilização de alguns produtos – todos crus e, muitas vezes, com casca – e, o melhor de tudo: o sabor inigualável das combinações!
Multimistura e alimentação alternativa
A Dra. Clara conta que, ao visitar uma plantação de pimenta-do-reino, notou a presença de um certo farelo junto a cada pimenteira; indagando aos agricultores, descobriu que se tratava de farelo de arroz, produto então utilizado com o fito de estimular o crescimento das plantas.
Empolgada com a descoberta, Dra. Clara estudou os componentes nutricionais do farelo de arroz, encontrando ali uma potencial fonte de minerais. Introduziu o produto no cardápio das creches e, em pouco tempo, observou uma importante redução dos casos de diarreia nas crianças.
Ao farelo de arroz, adicionou outros farelos e pós de folhas ricas em minerais e vitaminas: assim nasceu a farinha Multimistura, ou simplesmente “Multimistura”, composta por 70% de farelo de arroz ou trigo, 15% de pó de folhas de mandioca e 15% de pó de sementes (gergelim ou abóbora).
Usando cardápios enriquecidos com Multimistura, observou-se que, em quatro meses, as crianças se recuperavam. Os resultados obtidos foram apresentados em congressos e seminários de Pediatria, Enfermagem e Nutrição, até que, em 1983, Dra. Clara foi agraciada pela Sociedade Brasileira de Pediatria com o Prêmio Álvaro Bahia pelo melhor trabalho contra a mortalidade infantil.
No artigo “Alimentação Alternativa”, Dra. Clara explica que a qualidade do alimento está ligada à variedade, ou seja: seria mais nutritivo usar menor quantidade e maior variedade de alimentos, do que muita quantidade e pouca variedade. Segundo a autora, os produtos utilizados na Multimistura poderiam variar de região para região, mas deveriam ter alto valor nutritivo, baixo custo, bom paladar e produção regionalizada.
Valor nutricional da Multimistura
No caso do farelo de arroz, Dra. Clara Brandão destacou que o produto é nutricionalmente muito mais rico que o arroz polido, haja vista que a maior parcela dos nutrientes do arroz encontra-se na película, e esta é removida durante o processo de “beneficiamento”.
Quanto ao pó da folha de mandioca, informou ser rico em nutrientes, especialmente selênio e zinco; esclareceu que, na ausência desse ingrediente, é possível sua substituição por farinha de trigo, mas alertou para a grande diferença nutricional entre esses produtos:
Já o gergelim constitui excelente substituto para o leite de vaca comum, oferecendo dez vezes mais cálcio que o produto de origem animal, além de garantir maior sustentabilidade na produção.
Multimistura e o combate à desnutrição infantil em diversos países
O sucesso dos estudos de Dra. Clara Brandão no combate à desnutrição de crianças e até adultos levou a Pastoral da Criança – organização social vinculada à Confência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) – a aderir à fórmula preconizada pela médica. Em 1985, a Pastoral começou a ensinar às mães de família e às lideranças comunitárias o que ficou conhecido por “Alimentação Alternativa”, que consistia em acrescer à alimentação diária uma mistura feita com farinhas e cereais, farelo de trigo e de arroz e um pó de folhas verde-escuras, de sementes e de cascas de ovos. Em pouco tempo, a fundadora da Pastoral, a médica sanitarista Zilda Arns, percorria o país e o mundo difundindo as vantagens dessa mistura, que, a despeito do baixo custo, era capaz de recuperar os casos mais graves de desnutrição.
Tais características levaram seu programa de orientação alimentar contra a desnutrição a uma rápida disseminação por todo o país: além da Pastoral da Criança, também o Programa de Agentes Comunitários de Saúde – PACS, o Programa de Saúde da Família – PSF, a Cáritas, a Emater, a Indagro, a Caravana da Vida, alguns governos estaduais, muitos governos municipais e inúmeras ONGs passaram a utilizá-lo em suas ações de cidadania. O programa alcançou, ainda, cerca de 15 países da América Latina, África e Ásia.
Atualmente, em virtude da ausência de consenso na comunidade científica sobre o uso da Multimistura, a Coordenação Nacional da Pastoral da Criança deixou de utilizar esse produto como “carro-chefe” de sua ação junto às comunidades assistidas; entretanto, a Pastoral não deixa de defender a “Alimentação Enriquecida” como parte da alimentação diária das famílias, orientando sobre a melhor forma de preparação e os cuidados de higiene necessários ao manuseio dos ingredientes.
Breve histórico de vida da Dra. Clara
Sempre imbuída de forte interesse pelas questões sociais, Dra. Clara Brandão começou a participar de trabalhos voluntários quando ainda cursava o Ensino Médio, intensificando sua atuação durante a faculdade na Universidade de São Paulo (USP) – onde, em 1969, se formou em Medicina, com especialização em Pediatria, e posteriormente, em Nutrologia – bem como durante a residência na ala de pediatria do Hospital das Clínicas.
Em 1972, já formada e casada, foi morar na cidade de Miracema do Tocantins (TO), onde montou, juntamente com o marido – também médico – e outros colegas de profissão, o primeiro Centro de Educação e Recuperação Nutricional.
Posteriormente, mudou-se para o estado do Pará, onde se deparou com o alto grau de desnutrição das crianças da região, que sofriam de males como diarreia, hipovitaminose A e anemia. Em 1975, morando em Santarém e motivada por uma seca que produziu grande número de desnutridos, iniciou pesquisas sobre as preparações alimentares regionais disponíveis para a população local. Criou, então, a ONG Seara – Sociedade de Estudos e Aproveitamento da Amazônia, e, com o apoio do Programa Casulo da Legião Brasileira de Assistência – LBA, montou 13 creches infantis, que chegaram a atender 390 crianças.
