Nessa obra, trechos autobiográficos somam-se a relatos de residentes das Comunidades-Luz e de colaboradores de diferentes regiões, formando uma biografia viva e contundente de José Trigueirinho Netto. 

Uma tarefa acolhida com amor e gratidão. Foi assim que a fotógrafa e escritora Ana Regina Nogueira respondeu ao pedido do Conselho de Regência, quando foi convidada para escrever a biografia sobre o filósofo – espiritualista José Trigueirinho Netto, fundador da Obra que agrega a Comunidade-Luz Figueira a vinte e quatro outras filiadas, que juntas formam a Fraternidade – Federação Humanitária Internacional (FFHI).

Devido ao vasto legado de Trigueirinho, sua vida não caberia em um livro apenas. Assim nasceu a coleção intitulada “Conversas sobre Trigueirinho”, com dois volumes publicados, o terceiro tendo início e um quarto por vir.

José Trigueirinho Netto

A relação da autora com “José”, como carinhosamente o chama, aprofundou-se quando ela deixou o Rio de Janeiro para viver em Lavras, MG, com o objetivo de se colocar a serviço da Obra e ficar mais próxima da Comunidade-Luz Figueira e do instrutor, que ali viveu até a morte, em 2018.

Sua relação com José foi-se fortalecendo à medida que Ana Regina desenvolvia, desde 2003, projetos gráficos e editoriais para obras dele, além de tarefas afins: produção de capas e miolos de livros, design gráfico de outras mídias, autoria de quatro publicações, como “Viver o Amor aos Cães”. Para falar da relação afetiva com José e da criação do “Conversas sobre Trigueirinho”, Ana Regina concedeu-nos esta entrevista:

O projeto editorial Conversas sobre Trigueirinho nasceu após sua morte, em 2018?

Um ano após a partida de Trigueirinho para outros planos, fui convidada a escrever sua biografia. O convite chegou através de um membro da Irdin Editora. Logo percebi – porque a gente vai ouvindo as indicações internas – que a obra dele, por ser tão intensa, vasta, tão magna, mereceria ser sintetizada em uma coleção de quatro livros. E o Conselho de Regência aceitou a proposta.

Qual é a abordagem do Livro 1?

O Livro 1 é construído a partir de relatos. A fim de demostrar a diversidade de pessoas que ele atraiu, convidamos vinte e um membros da Obra criada por Trigueirinho – entre consagrados, residentes e colaboradores. A seleção partiu de uma lista inicial de duzentos e cinquenta nomes. A escolha não seguiu um critério racional, deixamos a intuição ir definindo a quem convidar. Conversei com cada um longamente. Devido aos relatos, eu mesma fui sendo conduzida mais profundamente pelo universo do instrutor, o que me ajudou a escrever o Livro 2.

O Livro 2, que retrata desde o nascimento de Trigueirinho em São Paulo, em 1931, até 1990, também foi construído a partir de relatos?

Livro 2 contém trechos autobiográficos, escritos por Trigueirinho em seus primeiros livros ou contados em entrevistas que deu para rádios e jornais. Somam-se relatos de residentes das Comunidades-Luz e de colaboradores de diferentes cidades brasileiras, entretecidos a minhas reflexões. É uma biografia bem viva.

Trigueirinho reconheceu, aceitou e preparou-se para a própria missão. Com coragem sem limite, fé e amor absolutos, entregou a própria vida ao Plano de Deus. Ele fala da própria caminhada apenas se as situações são espiritualmente importantes. Selecionei fatos autobiográficos sobre a infância, a adolescência, o período em que esteve na Europa para estudar cinema. Ele foi um cineasta importantíssimo. Com o filme Bahia de todos os Santos tornou-se um precursor do Cinema Novo, trazendo para as telas do cinema uma nova consciência sobre o Brasil e a alma brasileira. Afastou-se daquela visão hollywoodiana, daquela visão europeia que, até então, os cineastas brasileiros adotavam. Se Trigueirinho nada tivesse feito além desse filme, já teria entrado na história de mudança da consciência brasileira.

Morou na Europa por anos na década dos 1950. Retornou ao Brasil para trabalhar como cineasta, mas acabou voltando para a Itália no início de 1960. Um ser culto, além da profunda busca espiritual dedicou-se a estudos durante toda a vida. Sempre obediente ao mundo interno, seguiu indicações dadas pelos próprios sonhos e deixou o cinema, ajudado por sua instrutora italiana, que ele chama de “amiga” em seus livros – o Livro 2 revela, inclusive, o nome dela. Enfim, conforme ele foi-se transformando, deixou o cinema, o que provocou tristeza no meio cinematográfico brasileiro por perder um dos maiores talentos e esperança do meio.

Sua instrutora então lhe sugeriu estudar Hotelaria, em Roma, por essa ser uma profissão de serviço ao próximo. O livro percorre seu sucesso na hotelaria, as provas, o serviço de oração e a formação do grupo e de duas comunidades, além de seus dezesseis primeiros livros.

Em 1976, ele organizou o primeiro grupo de oração onde morava, em São Paulo, que se multiplicou rapidamente por várias cidades brasileiras, onde ele passou também a dar estudos em casas particulares e a promover retiros. Em 1977, ele desenvolveu uma experiência grupal em São Paulo, num restaurante vegetariano. Em 1982, deu início à construção da comunidade Nazaré Paulista. As palestras passaram a acontecer, pelo Brasil e a Argentina, em auditórios cada vez maiores. Milhares de ouvintes se aproximaram dele com entusiasmo. Ele foi um grande e discreto curador de multidões.

Durante 25 anos, Trigueirinho esteve sendo preparado para, em 1988, estar pronto para a etapa seguinte, a construção da Comunidade-Luz Figueira.

Sobre tudo isso, o livro detalha.

Você pode nos adiantar a temática do livro 3? Retrata a construção da Comunidade-Luz Figueira?

Sim. O Livro 3 se inicia em 1987 e segue até o desencarne de José, em 2018. Narrará sobre a Comunidade-Luz Figueira – ele na Comunidade-Luz, a construção da comunidade, a criação de seus setores e as transformações do grupo. Já iniciei as pesquisas, as leituras, a ordem dos capítulos.

Como se deu seu envolvimento profissional com José?

Durante os primeiros dez anos na Obra, a partir de 1992, tive contatos pessoais esporádicos com ele, trocamos alguma correspondência, ele me enviava livros de presente. Meus dois filhos pequenos também participavam de atividades na Comunidade-Luz Figueira. Tínhamos um estudo espiritual para crianças e jovens em Lavras e os levamos em um ônibus, em mutirão, para passarem um dia na Vida Criativa. Trabalharam na sementeira e na horta e José os recebeu no salão de partilha, onde fizeram um círculo.

Tecíamos a nossa relação, nosso vínculo, até que, em 2003, eu me ofereci para trabalhar na Irdin Editora, que acabara de se mudar para Carmo da Cachoeira, vinda de São Paulo. Na primeira vez que fui à Editora, Trigueirinho lá estava. Nesse encontro inusitado, ele me encomendou a capa de um livro de Clemente. Sou fotógrafa há 50 anos, e quando lhe disse que estava criando, para um setor da Comunidade-Luz Figueira, um audiovisual sobre o bambu, com música de Vivaldi, ele atravessou como um raio o salão onde estávamos. Veio até a mim. Olhando bem de perto os meus olhos disse que eu tinha energia beethoviana e que estudasse Beethoven. E me pus a ouvir Beethoven. Ao final de um ano, criei um audiovisual com o coral da Sinfonia n⁰ 5. Nunca mais ele deixou de me oferecer trabalhos e a juntos analisarmos cada um detalhadamente. Ensinou-me muito, em todos os planos de consciência. É o meu mestre.

A partir de 2013, passou a me encomendar a escrita de livros, e a me ligar. Conversávamos sempre ao telefone. Quando ele desencarnou, estava revisando meu quarto livro Fraternidade – Missões Humanitárias Internacionais. Em sua última ligação, no sábado à noitinha, cinco dias antes de partir, avisou-me que, naquela semana, trabalharia um livro canalizado por Irmã Lucia e depois prosseguiríamos. Nos dias seguintes, senti-me estranha, tomada por um vazio inexplicável.

Conte-nos sobre seu processo de criação das artes e da produção dos livros.

José me oferecia um desafio atrás do outro. Eu sabia fotografar, mas ele me solicitava o que eu desconhecia: design gráficos de CDs, cartazes, a criação do site dele e o da Irdin, um novo projeto do “Sinais de Figueira”. Também capas de livros lançados pela Editora Pensamento até que, um dia, mostrou com a mão a estante com os livros dele e disse-me para eu trocar todas as capas. Criei também logos, como os da Casa Luz da Colina e o da Casa Redención, folders. Até que ele me pediu para redesenhar miolos de livros dele. Então, precisei aprender a trabalhar mais outro programa digital.

Em 2013, mais treinada em criar projetos gráficos e a diagramar, convidou-me a escrever. Nunca lhe disse não. Sempre tive certeza de que, caso ele solicitasse, eu daria conta do trabalho. E solicitou-me quatro livros. Para quase todos criei os projetos gráficos. Eu os diagramo e insiro imagens enquanto escrevo diretamente no In Design. Quando escrevo o último capítulo, o livro está pronto para ser repassado para a Irdin, revisto e impresso.

Enfim, escrever e diagramar um livro é um processo dinâmico. Nada se repete, nunca. As sinalizações chegam. Eu me sento em frente ao computador como uma folha em branco. Deixo acontecer. Os caminhos dos livros são indicados claramente, sutilmente. Sou muito ajudada pelo invisível e pelo grupo. Escrevo livros grupais, com a participação de muitas pessoas. É assim.

Sua relação com Trigueirinho era (é) profunda e amorosa. Muitas saudades?

Minha relação com José é de profundo amor, respeito. Era uma alegria trabalhar com ele. Aprendi demais, demais! Era super minucioso. Uma vez trabalhei com ele por dez dias seguidos revendo o livro “Ensolarar Vidas”, de manhãzinha até à noite, lado a lado, ombro a ombro. Foi em F3, onde ele morava.

Dei caronas para ele. Eu ficava mais em silêncio, aguardando vir dele a fala. Depois eu respondia. Sempre me surpreendia! Numa das caronas, perguntou-me inesperadamente: “Você não gosta de cozinhar, não é?” Respondi que não. E ele: “Outro dia eu estava em casa pensando sobre o que você gosta de comer.” “Azeite!” rsrsrs… E comecei a lhe falar sobre um galão de azeite vindo de uma Quinta de Portugal. Passou um tempo. Eu estava dando uma palestra sobre a morte na Casa Luz da Colina quando me interromperam, pois ele estava ao telefone perguntando se eu iria à partilha naquela tarde. Assim que entrei no salão, ele me chamou. Imagine, entregou-me um pacote com vidros de azeite, mel, azeitonas – alimentos dos essênios, o povo que viveu antes de Cristo e cuja consciência inspira esta Obra. José sempre nos presenteou!

Nossa relação era natural e suave, em geral relacionada ao trabalho que eu estivesse desenvolvendo. Uma das coisas que me instruía é para eu manter a espontaneidade e a rapidez na resposta ao que me era pedido. Agora, se algo não estivesse bem, ele era de uma sinceridade e poder cortantes. Chocou-me algumas vezes. Abalava-me da cabeça aos pés. Nunca nos deixava estacionar, e isso foi maravilhoso, um constante desafio que nos fazia crescer. Como o admiro! Amoroso, exigente, perfeccionista, uma companhia maravilhosa, divertida. Às vezes, ria, contava cada coisa… e ria, ria… eu chegava a emudecer pelo imprevisto…

Ele me ligava a qualquer hora, de manhãzinha, às 22h30, sempre pelo fixo. Agora, o telefone silenciou. Sinto falta demais de Trigueirinho. E amo o grupo e o trabalho que ele nos deixou.