Pessoas sujeitas a situações de vulnerabilidade sanitária e alimentar em abrigos, provavelmente vão passar também por uma crise de saúde. A premissa que norteia o módulo Saúde do Manual Esfera tem embasamento no dia a dia de atores e organizações com atuação em crises humanitárias, envolvendo refugiados ou populações afetadas por desastres naturais.

Desde início do trabalho da Fraternidade – Federação Humanitária Internacional (FFHI) em Roraima, em novembro de 2016, os missionários perceberam que a saúde é o principal eixo da vida cotidiana nos abrigos. As fragilidades físicas e emocionais – em decorrência do deslocamento forçado, às vezes sob violência, e de viver num país estranho, com língua e costumes diferentes – podem gerar um estado de tensão e estresse capaz de desembocar em doenças da mente e do corpo. A missionária Clara, que atua na crise dos refugiados venezuelanos, explica:

“O estado de desnutrição que eles chegam, na maioria das vezes, é avançado, tanto em crianças, como em adultos”, conta ela. “Muitas vezes a jornada é feita a pé, em longas distâncias, facilitando o surgimento das doenças oportunistas. Muitos chegam com doenças básicas, que poderiam ser perfeitamente tratáveis, mas que por falta de assistência no país de origem, já estão em estado crônico ou agudo. Alguns poderiam receber um tratamento mais tranquilo, com medicação moderada, mas acabam internados em hospitais”.

Manual Esfera - Saúde Parte 6

O programa de saúde do Manual Esfera é dividido em dois grandes eixos: os Sistemas de Saúde (que abrange desde o fortalecimento da prestação de serviços públicos de saúde, recursos humanos, suprimentos e medicamentos, até financiamento e coleta de informações para orientar a assistência) e a Atenção Essencial de Saúde (incluindo as doenças transmissíveis, saúde da criança, saúde sexual e reprodutiva, saúde mental, traumas, chegando aos cuidados paliativos). *Veja detalhes no quadro.

No caso da Atenção Essencial de Saúde, o objetivo imediato é reduzir o excesso de mortalidade e de morbidade, seja nas causas de impacto direto, como lesões e traumas que levam à morte, no caso de terremotos, por exemplo; seja nas de impacto indireto, provocadas por mudanças nas condições de vida, falta de proteção e cuidados médicos, a exemplo dos surtos de doenças como o sarampo.

O Esfera aponta, como responsabilidade das organizações envolvidas na resposta humanitária, o apoio e o desenvolvimento de sistemas de saúde, com ações como a contratação de pessoal especializado e o planejamento das intervenções de modo a potencializar os sistemas de saúde existentes. Nas chamadas crises urbanas, onde as populações afetadas estão abrigadas na cidade, os atores devem proporcionar às vítimas o conhecimento do funcionamento do sistema de saúde, saber onde buscar medicamento, além de identificar as pessoas em risco e apoiar os serviços existentes.

A experiência dos missionários da Fraternidade – Humanitária (FFHI) ensina que as condições de saúde são um desafio diário, porque o abrigo é um organismo vivo. As pessoas entram e saem todas as semanas, todos os meses. “Cada imigrante que chega é uma situação a ser resolvida, tanto na saúde física como na saúde mental. Como os missionários contribuem nesse setor? Hoje a Fraternidade – Humanitária (FFHI) tem enfermeiros, técnicos de enfermagem, com o objetivo de organizar a saúde do abrigo de forma que os recém-chegados saibam onde buscar ajuda”, diz Clara.

Espaço para Compartilhar

Fraternidade – Humanitária (FFHI) conta com a parceria da Operação Acolhida, cujos médicos atendem uma vez por semana em cada abrigo e mantêm de prontidão um esquema de socorro em situações emergenciais, com uso de ambulância para levar pacientes a um hospital ou unidade de saúde. Mas tão importante quanto essas ações, é um outro tipo de cuidado protagonizado pelos missionários da Fraternidade – Humanitária (FFHI): “Eles entram com a atenção. Tudo aquilo que aprenderam ao longo de décadas é colocado em prática. Porque sabemos que, muitas vezes, pessoas com a pressão alta ou em situação de depressão só precisam desabafar”, afirma Clara.

Tão avassaladora para a saúde dos refugiados quanto as enfermidades, traumas e surtos de doenças, são as questões relacionadas à saúde mental. Duas profissionais de saúde da Fraternidade – Humanitária (FFHI), as missionárias Fátima e Mariandja, explicam que é possível ajudar as pessoas a superar as fragilidades, angústias e medos desencadeados pela situação de desterro, com apoios construídos pelo conjunto dos atores e de ações implementadas no dia a dia dos abrigos.

“Eu tive a possibilidade de observar crianças, jovens, adultos e idosos com diferentes doenças, transtornos ou deficiências, condições sociais e situações de discriminação. E é algo surpreendente acompanhar um acolhimento humanitário e observar os diferentes meios que as pessoas encontram para dar sentido às suas vidas”, diz a missionária Fátima. “É algo que nenhum profissional da saúde faz sozinho. É muito importante a participação conjunta de psicólogos e assistentes sociais que estão no abrigo, dos pares, dos companheiros de caminho, dos grupos que ali vão, de algum modo, construir uma identidade de quem está junto no espaço enfrentando dificuldades”.

O dia a dia dos abrigos mostra que é importante fazer com que as pessoas se conectem consigo mesmas, estabeleçam elos de confiança e de amizade por meio de atividades artísticas, do artesanato, do desenho, da pintura, da música, da dança ou da poesia. “Uma aula de português, por exemplo, pode ser o espaço de encontro entre pessoas, de compartilhar o que é estar num outro país e ao mesmo tempo falar da sua própria cultura, dos seus hábitos. São muitas as possibilidades de troca. Esse é um ponto chave”, diz Fátima. “Tudo aquilo que faz a pessoa ter contato com seu mundo interno, resgatando laços, memórias, histórias, relembrando seus vínculos deixados para trás, mas que elas trazem dentro do peito, guardado no coração. Muitas vezes isso se faz chorando dores antigas ou recentes, aliviando processos vividos”, completa.

A Escuta Solidária

Estar de prontidão para ajudar as pessoas no momento em que elas precisam é uma regra preciosa nas missões humanitárias. Dar a elas a oportunidade de falar e se expressar, seja em grupos ou individualmente, ajuda as pessoas a se sentirem úteis, atuantes e a resgatar habilidades que pareciam esquecidas. Isso faz com que elas participem da vida do abrigo, haja toda uma interação. É a escuta solidária.

“É muito importante você estar ali naquela hora. Às vezes, elas vão procurar você para uma tomada de decisão, para trazer algum sofrimento, alguma angústia num momento difícil. Você observa que estar ali, ajudando-as a discernir, pode de fato fazer a diferença”, diz Fátima.

O apoio psicológico e o conforto proporcionado pela escuta solidária foram a base da ajuda levada pelos missionários da Fraternidade – Humanitária (FFHI) na Missão Brumadinho. O rompimento da barragem da Vale do Rio Doce, em janeiro de 2019, fez com que a população da cidade vivesse o maior acidente de trabalho do Brasil. Foram mais de 250 vítimas fatais, gerando um impacto de proporções avassaladoras do ponto de vista da saúde física e mental nos grupos familiares afetados. Além disso, foi um dos maiores desastres ambientais da mineração. A lama tóxica destruiu, por onde passou, a flora, a fauna, contaminou a água e ainda hoje esconde pessoas que estão desaparecidas.

Os missionários da Fraternidade – Humanitária (FFHI) chegaram no primeiro momento e permaneceram 30 dias num cenário de desolação e caos. A flagrante necessidade de apoio psicológico às famílias das vítimas fez com que a Missão Brumadinho passasse a ser recorrente, com visitas mensais dos missionários da área de saúde mental. A missionária Mariandja experimentou o desafio de viver o estresse do entorno da tragédia, tendo que construir vínculos com as famílias nos encontros mensais. “Elas precisavam de apoio nessa situação de trauma profundo. Aquelas pessoas dia a dia aguardavam o encontro do corpo de seu familiar para fechar a ferida daquele luto que se apresentou em suas vidas de forma inesperada, violenta e impactante”, conta ela.

Os missionários da Fraternidade – Humanitária (FFHI) acompanharam dezenas de histórias ao longo de um ano de visitas. Para chegar até as famílias, eles tinham que se deslocar pela área devastada, assistindo a profunda dor do Reino Mineral. “Cada missionário dessa equipe viveu o exercício profundo da própria resiliência, encontrando nesse trajeto o seu melhor ponto de equilíbrio e paz para poder levar um aceno da cura, de conforto e esperança para os corações devastados”, finaliza a missionária.

 

QUADRO: As Normas de Saúde

Sistemas de saúde

A população tem acesso a cuidados de saúde integrados e de qualidade, seguros, eficazes e orientados ao paciente.

Acesso a pessoal de saúde qualificado em todos os níveis de atenção à saúde.

Acesso a medicamentos e materiais médicos essenciais, seguros, eficazes e de qualidade garantida.

A população tem acesso a cuidados de saúde prioritários gratuitos durante a crise.

Os cuidados de saúde são guiados por evidências, por meio da coleta, análise e uso de dados de saúde pública.

Atenção Essencial de Saúde

– Acesso a cuidados de saúde e informações para prevenir doenças transmissíveis.

– Sistemas de vigilância epidemiológica e notificação de casos facilitam a detecção precoce e a resposta a surtos.

– Diagnóstico e gerenciamento de casos.

– Preparação adequada para os surtos, para que possam ser controlados de maneira oportuna e eficaz.

– Doenças da infância infectocontagiosas podem ser prevenidas pela vacinação.

-Tratamento de doenças em recém-nascidos e na infância.

– Serviços de saúde e planejamento familiar evitam a morbimortalidade materna e neonatal excessiva.

– Violência sexual e tratamento clínico de estupro.

– Cuidados de saúde impedem a transmissão e reduzem a morbimortalidade por HIV.

– Serviços de trauma eficazes para evitar mortalidade evitável, morbidade, sofrimento e incapacidade.

– Tratamento de distúrbios de saúde mental e as deficiências funcionais que os acompanham.

– Programas preventivos, diagnósticos e terapias para complicações agudas, bem como cuidados prolongados para doenças não transmissíveis.

– Aliviam a dor e o sofrimento, oferecem conforto, dignidade e qualidade de vida aos pacientes terminais e apoiam suas famílias.